sexta-feira, 14 de maio de 2010

Capítulo X - Anjos

Minha mãe chegou fechando a porta silenciosamente como de costume. Deixou cair seu pesado casaco nas costas de uma cadeira da cozinha e se apressou para fazer o de sempre: me dar um beijo no cabelo. Olhei para trás e forcei um sorriso retribuindo o beijo agora no rosto.


- Como foi seu dia querida?
- Normal mãe. Lux veio aqui essa tarde.
- Que ótimo! - ela disse como um grito de euforia irreprimível - Fazia tanto tempo que ela não vinha aqui.
- É verdade mãe. Foi legal. E o seu dia como foi?
- Ah, minha filha. O de sempre, trabalho, clientes chatos, papelada, mais trabalho. - e então ela bufou de exaustão.
- Então, Dona Abigail, eu tenho um ótimo remédio para você. Um belo banho quente no banheiro com banheira do segundo andar! - ela riu
- Parece ótimo filha. Vou aprontar as coisas. O que vai ter hoje para jantar? 
- Macarrão ao molho branco - ri sugestivamente pois sabia que ela adorava esse prato.
- Uau! Está melhorando aqui nesse espaço hen! - e como as divas de Hollywood fez sua saída triunfal!


Terminei de preparar todo o jantar e a mesa para eu e minha mãe jantarmos. Depois disso subi para meu quarto e então assim que entrei senti um delicioso cheiro de lavanda pairando no ar. Mas não havia nada de lavanda no meu quarto, como o cheiro estaria lá? Entrei e comecei a revirar minhas gavetas à procura de um pijama para vestir. Ao abrir a terceira gaveta puxei meu grande e desproporcional pijama verde que me deixava com aparência de sapo mas que eu amava. Porém, embaixo, agora no lugar onde estava o pijama, estava uma folha de papel; um papel que lembrava muito o que devia sido deixado no meu bolso alguns dias atrás pelo Ricardo. Peguei o papel e abri, eu não tenho hábito de guardar papéis em gavetas ou algo do gênero; minha agenda já tinha isso como obrigação. No papel encontrava-se um texto com uma letra na qual não se passaria por estranha aos meus olhos. Estava escrito:








As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz…
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d’escuma revolvem-se nus!
E quando de noite vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear,
E a trança luzente da nuvem flutua,
As ondas são anjos que dormem no mar!
Por que não consentes, num beijo de amor
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?




Anjos do Céu - Álvares Azevedo




Sei que gosta desse poema. Não quero que me esqueça. Mas agora vou ser o anjo que dorme no mar.
Ricardo.

Senti meu corpo inflamar em chamas que me consumiam lentamente mas que não me queimavam. Meus membros se arrepiaram e senti o mesmo vento na nuca de quando eu pensava nele. Meus dedos se fecharam para o papel como se eu pudesse tocá-lo. Meus olhos se fecharam e pude sentir seus lábios. Como ele sabia do meu poema favorito eu não fazia a mínima idéia. O que queria saber era o motivo pelo qual ele disse que seria o anjo que dorme no mar. Seria isso uma forma dele dizer que vai se afastar de mim? Eu sabia que havia evitado ele; e talvez por isso ele queira ir embora para nunca mais voltar. Eu não podia permitir. Ele poderia ir embora e me deixar aqui sem saber o real motivo. 

- Alice! Alice, filha, cadê você?
Minha mãe irrompeu pela porta do meu quarto a minha procura e então fechei o papel rápidamente colocando-o dentro do bolso frontal do meu casaco.
- Oi mãe. O que foi?
- Ora, 'O que foi'. Estou te procurando para jantar. Pensei que já estivesse terminado o banho. 
- Não mãe, eu só... Me distrair vendo umas coisas aqui no quarto. Pode descer e ir colocando o seu prato. Já vou descer para te acompanhar.
- Tudo bem. Não demore.

E então ela saiu, me deixando sozinha com minhas gigantes dúvidas que pareciam me esmagar em todos os lugares. Tirei o papel do bolso e o coloquei dentro da minha agenda logo na primeira página. Ainda teria a madrugada inteira para ficar olhando para aquilo e me questionar diversas vezes sobre os mesmos questionamentos.

Tomei um banho quente, pois só isso me fazia acalmar, e então coloquei meu pijama verde-brejo. Desci e encontrei uma mãe completamente lambuzada de molho branco. Não pude me conter e rir. Minha mãe era meu exemplo e minha cúmplice sempre. Vê-la feliz, e se divertindo até com a comida na qual ela mais gosta me fazia feliz e até me deixava esquecer momentaneamente os meus 'problemas' que perto dos delas pareciam uma conta ridícula de matemática que aprendi a anos atrás no começo da minha alfabetização. Comi com ela um enorme prato de macarrão. Depois lavei a louça e me deitei confortavelmente no sofá para ver o fim de um filme de comédia romântica que passava pela milésima vez na tevê e que mesmo assim me fazia rir. Assim que minha mãe subiu para seu quarto eu também me recolhi indo somente antes ao banheiro para escovar os dentes. Então me lembrei do papel que estava na minha gaveta. Eu não tinha esquecido aquilo, mas enquanto estava na sala o deixei em segundo plano, escondido e abafado pelos meus outros pensamentos, mas agora ele parecia ter voltado com uma força inacreditável fazendo minha cabeça doer. Entrei no meu quarto como quem entra em uma batalha; pronta para todas as emoções que iriam vir, e então me armei com minhas barras de cereais e meu enorme cobertor colocando em cima de mim apenas minha agenda com aquele papel dentro. Tudo estava na minha frente como um flashback no qual já sabia todas as falas. Mergulhei no mais profundo dos meus sentimentos e quando pensei suforcar senti que podia respirar embaixo de todo aquele mar de pensamentos e então decidi ficar ali. Pelo menos por algumas horas.

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